Rede de Observatórios de Segurança

Três anos da ADPF das Favelas

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event 23 de maio de 2023

Por Wellerson Soares*

Já são quase três anos desde que a ADPF 635 está em vigor para enfrentar a violência policial no Rio de Janeiro. Desde junho de 2020, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) escreve um capítulo novo, diariamente, na história da segurança pública do estado. O roteiro que deveria ser previsível pelas claras determinações previstas na ação, porém, mostra-se imprevisível ao deparar-se com inúmeras forças em cena. O resultado até aqui são altos e baixos, operações extremamente letais, chacinas, acusações, conspirações, insubordinação, entre outras nuances. 

A instauração da ADPF das Favelas ocorreu em novembro de 2019, em meio a um contexto de guerra. A escalada de mortes por agentes policiais chegava a patamares históricos: 1.534 vítimas em 2018, e 1.810 óbitos no ano seguinte. 2020 começa repetindo o modus operandi de seus antecessores e atinge o estopim para a implementação da arguição em maio, quando João Pedro, na época com 14 anos, foi morto por policiais durante uma operação no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio. 

Com a aprovação liminar da ADPF por parte do ministro Edson Fachin em junho daquele ano, o impacto no número de mortes rapidamente foi visto. Com as restrições impostas – de utilização de helicópteros como plataformas de tiros, a não realização de incursões noturnas, operações apenas em ocasiões urgentes enquanto durar a pandemia do coronavírus, entre outras determinações –, no mês de implementação da medida foram contabilizadas 34 vítimas, contra 153 no mesmo período em 2019. 

Nos primeiros meses em vigor, de junho a setembro, o Rio teve 191 óbitos, frente a 675 no mesmo intervalo do ano anterior, uma redução de quase 72%. Mas o capítulo que parecia dar indícios positivos durou pouco e parou por aí.

Desde o início, grupos conservadores e as forças de segurança do estado se colocaram contra a arguição e levantavam a hipótese de os criminosos se beneficiarem da ADPF. Já no último trimestre de 2020, as polícias voltaram ao seu modus operandi, destilando truculência e imperícia em manter a ordem social.

O período também foi palco de uma reviravolta determinante para escrever novos capítulos que entraram para a história da segurança pública do Rio: a ascensão de Cláudio Castro ao poder. Vice-governador à época, ele assumiu interinamente a primeira cadeira em agosto de 2020 e desde então comanda o estado organizando chacinas de tempos em tempos. 

Em sua pequena biografia política, Castro detém três das cinco chacinas policiais mais letais da história do estado. Para comemorar a efetivação no cargo após oito meses como interino, o então filiado ao PSC promoveu a incursão policial com mais mortes de seu histórico e do estado, já no primeiro mês como eleito: 27 mortos no Jacarezinho, Zona Norte do Rio, em maio de 2021. Meses depois, em novembro, foi registrada a chacina do Salgueiro, em que nove pessoas foram vitimadas. O resultado ao fim daquele ano foi o aumento das mortes por intervenção (8,8%).

Seguindo seu antecessor, apesar do insucesso, Castro manteve as forças policiais sem controle. Essas, por sua vez, continuaram a agir quase que de maneira independente, sem transparência e, consequentemente, descumprindo as determinações judiciais da ADPF. Apreensões e atuações de inteligência foram ínfimas perto dos corpos e do rastro de sangue deixado pelos agentes do caos. Além disso, o secretário de polícia civil escolhido para a atual gestão, Alan Turnowski, assumiu dizendo que as restrições não impediriam operações porque, segundo ele, o estado estava em situação de ‘’exceção’’.

Nesse contexto, as justificativas para o descumprimento da ADPF das Favelas foram diversas: sob o aspecto operacional, baseado na justificativa de que o confronto armado seria iniciado pelos criminosos, em reação às ações das polícias; no institucional, com a alegação de que as operações seriam registradas, informadas e planejadas dentro dos parâmetros legais, com a geração de inquéritos policiais acompanhados pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ). Além disso, a tentativa de emplacar a narrativa conspiratória de que o Rio estaria recebendo uma onda migratória de criminosos. Todas essas teorias eram suficientes para a manutenção de operações aos montes e a produção de mortes em massa. 

Um ano depois da maior chacina da história do estado, maio de 2022 também foi sangrento e registrou a segunda operação mais letal, com 24 mortos na Vila Cruzeiro. E dois meses depois, em julho, o Complexo do Alemão foi palco de mais um evento violento policial, com 16 óbitos. O ciclo foi encerrado com a letalidade das polícias atingindo 1.327 pessoas, número cinco vezes maior do que as 256 produzidas pela polícia de São Paulo no mesmo ano e mais mortes do que o Ceará produziu em uma década (1.229) por intervenção de agentes.

Em 2023, a Organização Mundial da Saúde decretou o fim da emergência sanitária de interesse internacional da pandemia do coronavírus. E isso pode ser um farto precedente para que se continue a justificar operações letais, já que a ADPF foi elaborada para impedir operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia de covid-19. Mas mais do que apenas para o período, a arguição representa um pedido popular para a implementação de um plano de redução da letalidade policial com ampla participação da sociedade civil e instituições comprometidas com os direitos humanos para reescrever a história da segurança pública do Rio de Janeiro.

Wellerson Soares é jornalista na Rede de Observatórios.

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