Rede de Observatórios de Segurança

Uma epidemia na pandemia: 58% dos feminicídios é cometido por companheiros das vítimas

event 10 de março de 2021

*Juliana Gonçalves

Nos primeiros dias do ano, ainda impactados pela morte da juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi que foi morta na frente das filhas no véspera de Natal, recebemos uma enxurrada de notícias sobre feminicídios em diferentes partes do país. São casos como o da jovem carioca Bianca Lourenço, de 24 anos, morta pelo ex namorado após postar uma foto de biquine e da cearense Keron Ravach, de 14 anos, a mais jovem vítima de transfeminicídio do país. Esse é um retrato de um país que vive uma epidemia de feminicídios dentro da pandemia do coronavírus. 

Mais da metade desses crimes, 58% deles, é cometido pelos companheiros das vítimas, segundo o boletim A Dor e a Luta: números do feminicídio divulgado pela Rede de Observatórios da Segurança na última quinta-feira, dia 4. O levantamento feito pela Rede traz números de cinco estados em 2020: Bahia, Ceará, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro. Os dados são gerados a partir do monitoramento do que é noticiado na imprensa e nas redes sociais. As pesquisadoras alimentam um banco de dados que é checado e consolidado posteriormente. 

Surpreende no boletim, a diferença entre os dados divulgados pela Rede e pelas secretarias de segurança dos cinco estados monitorados. Em São Paulo, Pernambuco e Ceará foram registradas mais mortes do que nos dados oficiais. O que acende um sinal de alerta quanto a classificação desses crimes. Crimes de feminicídio estão sendo encarados como homicídios ou lesão corporal grave seguida de morte pelas autoridades.  

É com base nos dados que as políticas públicas são construídas e revistas. Não se consegue mensurar a eficácia dos mecanismos existentes como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio. As pesquisadoras da Rede apontam para uma grande dificuldade de um recorte quantitativo racial por falta da informação da cor da vítima nas matérias monitoradas. Se os números estão subnotificados, não é possível realizar um enfrentamento de fato eficaz para esse tipo de violência que muitas vezes acontece em casa, o ambiente em que a mulher deveria estar segura. Ainda mais neste contexto pandemico em que vivemos. 

O estar em casa foi como um castigo para parte das mulheres que passaram a conviver mais tempos com seus algozes e tiveram mais dificuldades de acessar as redes de acolhimentos e os canais de denúncia. Esse efeito foi sentido nos cinco estados monitorados pela Rede de Observatórios com um aumento de casos noticiados na imprensa depois do isolamento social. Em São Paulo, que concentra 40% dos casos monitorados pela Rede de Observatórios, Dona Deice, uma senhora de 68 anos, tentou impedir que o marido saísse de casa sem máscara e acabou assassinada por ele.

Deice foi morta a facadas. Essa é uma dinâmica observada pelas pesquisadoras da Rede: muitos homens se utilizam de objetos perfurocortantes para matar suas companheiras. O local escolhido para desferir os golpes e a quantidade demonstram o ódio existente no ato do crime – que pode ser classificado como crime de ódio pelo nível de crueldade empregada. As chamadas armas brancas são as mais usadas nos feminicídios – principalmente nos estados monitorados no Nordeste. Em São Paulo, no entanto, existe um grande uso de armas de fogo. Isso acende o alerta para a discussão da ampliação do porte de armas defendida pelo governo Bolsonaro. Esta medida irá deixar as mulheres ainda mais expostas.  

Na Rede de Observatórios da Segurança são cinco casos de violência contra mulher por dia. Neste fim de semana, mais uma mulher foi morta pelo companheiro em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, Priscila Cardoso foi encontrada morta com ferimentos provocados por faca no último domingo, véspera do Dia Internacional da Mulher. O companheiro estava ao lado do corpo e foi preso em flagrante. Isso é fruto do machismo que alicerçou as bases da sociedade desde a época do Brasil colônia e que dá frutos ainda hoje. A mulher é vista como um objeto, como uma posse do marido. Precisamos falar destes crimes, lembrar que esse números são vidas, para que outras mulheres não morram vítimas desse machismo estrutural. 

** Juliana Gonçalves é jornalista, coordenadora de comunicação na Rede de Observatórios da Segurança, mestranda em Políticas Públicas em Direitos Humanos na UFRJ, cofundadora da newsletter Firma Preta e membra do Coletivo Minas da Baixada.

***Este texto foi originalmente publicado na Newsletter Fonte Segura.

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