Violência e racismo na Bahia
Uma Bahia violenta e, na violência, racista e desigual. Este foi o retrato que emergiu da apresentação do estudo “A cor da violência na Bahia: Uma análise dos homicídios e violência sexual na última década”, no dia 5de março, em Salvador. Inédito, o estudo da Rede de Observatórios da Segurança analisou dez anos de dados do Sistema Único de Saúde (SUS) para traçar a evolução das mortes violentas no estado e revelar com dados a chocante concentração da violência letal e sexual entre negros e negras.
“Este é o gráfico mais chocante que já apresentei em 30 anos de pesquisa sobre segurança pública”, enfatizou a coordenadora geral da Rede, Silvia Ramos. No telão, uma representação dos homicídios entre homens na Bahia, comparando brancos e negros. A partir dos 10 anos de idade, um abismo se abre entre os dois grupos populacionais. No grupo entre 20 e 29 anos, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes é de 55 para brancos e 236 para negros. “Esse gráfico é uma metáfora do racismo brasileiro. É por isso que a gente não consegue mudar e continuamos a ser um dos países mais violentos do mundo”, continuou Silvia.
As mulheres negras também sofrem com a violência sexual mais do que as brancas, mostrou o mesmo estudo. De 2009 a 2017, 6.975 mulheres foram vítimas de violência sexual na Bahia, com aumentos sucessivos de ano a ano: em 2009, foram registrados 121 casos; oito anos depois, em 2017 (últimos dados disponíveis), o número de ocorrências foi de 1.194, um aumento de 887%.
Dos casos de violência sexual registrados em 2017 pelo SUS – último ano para o qual dados estão disponíveis – 73% vitimaram mulheres negras e 12,8%, brancas. “A taxa deste crime entre mulheres negras habitantes da Bahia é 16 casos por cem mil, o dobro da taxa entre brancas, que é de 8 por cem mil mulheres”, diz o texto.
O encontro discutiu a política de Secretaria de Segurança da Bahia, que não disponibiliza publicamente os dados sobre eventos violentos de forma acessível. “Quantas pessoas foram mortas pela polícia baiana em 2019? Não se sabe, pois a polícia não divulga. Imaginem se, nessa crise do coronavírus, os secretários de Saúde decidissem não divulgar o número de casos? Seria inconcebível. Mas na área da segurança pública isso é possível”, continuou Silvia.
Por isso mesmo, projetos independentes de formação de dados estão crescendo na Bahia. Benila Regina Brito, do Odara Instituto da Mulher Negra, contou que, depois de anos de realização do projeto “Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar”, de apoio a mães e familiares de jovens vítimas da violência policial”, a organização sentiu necessidade de produzir o seu próprio mapeamento de casos. “Sabemos como é difícil trabalhar com esses casos. Cada jovem assassinado impacta a família inteira”, comentou.
Jornalistas do Correio, um dos maiores veículos da imprensa baiana, também se mobilizaram para criar o projeto Mil Vidas, que disponibiliza os dados de homicídios em um site próprio. “Embora, durante anos, toda a base tenha sempre estado disponível para qualquer cidadão no link indicado, desde 2018 a SSP vem retirando antigos registros, deixando apenas os de meses mais recentes. O Correio, então, decidiu publicar na íntegra todos os dados coletados nessa base desde janeiro de 2011.” Os dados ficam disponíveis para download neste link.
“Essas experiências nos ensinam muito”, comentou Dudu Ribeiro, coordenador do Observatório da Segurança Bahia. “Vamos conversar mais com o Mil Vidas e o Odara para ampliar nossa capacidade de monitoramento”, disse.
No encontro, os participantes também discutiram a importância do trabalho da imprensa como um observador crítico e independente das políticas governamentais. “No nosso monitoramento, percebemos que muitos jornais simplesmente replicam as informações oficiais. Ainda existe uma invisibilidade muito grande sobre o que acontece nos bairros periféricos. Além disso, a imprensa muitas vezes não classifica feminicídios como feminicídios. Quatro mortes violentas numa mesma localidade, na mesma ação, e os jornais não chamam de chacina”, disse Luciene Santana, pesquisadora do Observatório da Segurança da Bahia.
“É interessante refletir sobre as condições de produção da notícia. Com a redução de pessoal nas redações, muitos repórteres não vão mais ao local do fato e dependem de informações e imagens fornecidas pelos policiais”, ponderou Ricardo Moura, pesquisador do Observatório da Segurança do Ceará.