Pesquisadores de segurança pública e violência do Rio de Janeiro divulgaram na segunda-feira, 14/7, um manifesto de apoio à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) Número 635, conhecida como ADPF das Favelas pela Vida. O recurso é um tipo de ação judicial, prevista na Constituição Federal, que permite à sociedade exigir que o poder público cesse ações consideradas inconstitucionais.
A nota foi elaborada pela Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos, organização que representa diferentes instituições do Rio de Janeiro deste campo de pesquisa.
“A ADPF é uma ação fundamental para conter o uso desproporcional de força pelas polícias do Rio de Janeiro contra as populações negras e pobres de favelas e comunidades em território fluminense”, diz o manifesto. O documento lembra que a “escalada de mortes por intervenção de agentes do Estado chegou a patamares históricos únicos no Rio de Janeiro”. Em 2018, continua o texto, foram registradas 1534 mortes por agentes do Estado e, no ano de 2019, esse número aumentou 18%, chegando a 1810 mortes.
“Do total de homicídios cometidos no Rio de Janeiro, o percentual das mortes que resultam de ações policiais e/ou militares também vem crescendo, passando de 14% até 2016 para 31% no ano passado, fato inaceitável em qualquer modelo mínimo de Estado Democrático de Direito”, afirma o manifesto.
Veja abaixo a íntegra do documento, assinado por 92 pesquisadores:
NOTA DE APOIO DA REDE FLUMINENSE DE PESQUISADORES SOBRE VIOLÊNCIA, SEGURANÇA PÚBLICA E DIREITOS HUMANOS À ADPF 635 – FAVELAS PELA VIDA
Nós, pesquisadores da Rede
Fluminense de Pesquisadores sobre Violência, Segurança Pública e Direitos
Humanos declaramos nosso apoio à Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental n° 635, também conhecida como a “ADPF das favelas pela vida”. A
Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos
Humanos representa diferentes instituições de pesquisa sediadas no Estado do
Rio de Janeiro com notório saber nesse campo temático e conta com a adesão de
especialistas de diferentes áreas científicas e gerações, cujo conhecimento
produzido ao longo das últimas décadas é reconhecido nacional e internacionalmente.
A ADPF 635 é uma das mais importantes ações jurídicas já realizadas, que visa
regrar o poder de polícia possibilitando transparência, responsabilização e
prestação de contas públicas do seu exercício pelos agentes da lei, uma
contrapartida obrigatória da investidura dos mandatos policiais no Estado
Democrático de Direito. A ADPF é uma ação fundamental para conter o uso
desproporcional de força pelas polícias do Rio de Janeiro contra as populações
negras e pobres de favelas e comunidades em território fluminense. Por estas
razões subscrevemos tanto os pedidos que constam em sua petição inicial, como
também a decisão liminar proferida pelo Ministro Edson Fachin.
A
escalada de mortes por intervenção de agentes do Estado chegou a patamares
históricos únicos no Rio de Janeiro. Em 2018 foram registradas 1534 mortes por
agentes do Estado e, no ano de 2019, esse número aumentou 18%, chegando a 1810
mortes. Do total de homicídios cometidos no Rio de Janeiro, o percentual das
mortes que resultam de ações policiais e/ou militares também vem crescendo,
passando de 14% até 2016 para 31% no ano passado, fato inaceitável em qualquer
modelo mínimo de Estado Democrático de Direito. A taxa de homicídios por 100
000 habitantes do Rio de Janeiro não posiciona o estado entre os primeiros lugares
frente ao conjunto federativo, mas a taxa de letalidade policial fluminense é a
maior do país, respondendo por um quarto de todas as mortes por intervenção de
agentes do Estado no Brasil.
As operações policiais são responsáveis pela maior parte dessas mortes. Realizadas de forma pouco transparente quanto à pertinência operacional dos seus fins, a propriedade técnica dos meios logísticos empregados e a adequação de seus modos táticos de atuação, tais ações não têm registro notacional oficial, o que as tornaria objeto de escrutínio público sobre suas bases legais e legítimas. Apenas recentemente, as polícias elaboraram instruções normativas para a constituição de protocolos para a realização de operações, mas raramente são elas seguidas. Depois de três décadas de operações cotidianas, facções de tráfico de drogas e grupos de milícias dominam territórios de favelas em extensão ainda maior. Assim, ainda que as operações policiais estejam no centro das ações de segurança pública, não há evidências concretasde sua eficiência no combate à criminalidade, na asfixia dos mercados ilícitos e no desmonte dos domínios armados nos territórios populares, alvos das tais operações.
De acordo com os dados oficiais divulgados sobre a produção policial, os “saldos operacionais” das operações policiais são inferiores aos produzidos pelos policiamentos ordinários. Porém, restam comprovados os seus efeitos de violência, contrários à prioridade de defesa da vida, que fundamenta toda e qualquer missão segundo a doutrina policial profissional. As violentas operações policiais realizadas em favelas ao longo de mais de três décadas foram incapazes de proporcionar maior segurança aos habitantes fluminenses. Elas têm contribuído para a escalada de violência que coloca populações inteiras sob o fogo cruzado entre a violência do Estado e de grupos criminais armados.
As
populações negras, pobres e residentes em favelas e/ou periferias da Região Metropolitana
do Rio de Janeiro e demais municípios Fluminenses são as mais afetadas pelas
operações policiais. São elas que têm suas áreas de moradia tratadas como
territórios hostis, e seus corpos considerados alvos, expostos a todo tipo de
arbítrio durante as ações policiais. Suas rotinas são duramente afetadas pelas
incursões policiais que interrompemos serviços públicos dirigidos a essas
populações, como escolas e postos de saúde. As polícias devem intervir em
situações críticas e cenários adversos reduzindo riscos e perigos reais a que
estão expostos os cidadãos e os próprios policiais em sua ação. Não há missão
policial legal e legítima que justifique expor pessoas ao risco de morte por
arma de fogo no interior de suas próprias residências, como ocorreu com João
Pedro, de 14 anos, adolescente negro morto por policiais enquanto brincava
dentro de casa, em maio deste ano, no município de São Gonçalo, região que já
registra 129 mortes por intervenção de agentes do Estado contra 120 registros
de homicídios dolosos nos primeiros cinco meses de 2020. Nada justifica expor crianças
ao risco de morte por arma de fogo a caminho da escola, como ocorreu com Marcos
Vinicius, assassinado por policiais durante uma operação na Maré em junho de
2018. Nada justifica que policiais efetuem disparos de arma de fogo contra
escolas, como os três projéteis de fuzil que atingiram a mataram a menina Maria
Eduarda, dentro de uma escola municipal em Acari em março de 2017.
Durante o
atual período de pandemia da Covid-19, quando os esforços policiais deveriam
priorizar a vigilância sanitária, sua atribuição legal em convergência com
outros agentes públicos para a defesa da vida, as operações policiais e as
mortes por elas ocasionadas aumentaram no Rio de Janeiro, culminando nachacina
de 15 de maio no Complexo do Alemão, com 12 mortes. Depois da liminar proferida
pelo Ministro Edson Fachin no dia 5 de junho, o número de operações e,
consequentemente, de mortes e feridos caiu de forma considerável. É, por isso,
que a ADPF 635, ação que resulta da luta histórica dos movimentos de favelas e
dos movimentos de familiares de vítimas e que conta também com apoio de ONGs,
partidos políticos e órgãos estatais, vem em hora mais que oportuna. Somamo-nos,
portanto, a esta mobilização pelo direito a vida das populações negras e
residentes em favelas, solicitando aos demais ministros do Supremo Tribunal
Federal que se sensibilizem e votem de forma favorável à ADPF 635.
Assinam:
- Adriane
Maia – Fiocruz
- Alexandre Werneck
– UFRJ.
- Ana Paula
Miranda – UFF
- André
Rodrigues – IEAR/UFF
- Avelina
Addor – Unirio
- Bernardo
Ferreira – UERJ
- Caíque
Azael Ferreira da Silva – PPGP/UFRJ
- Carla
Rodrigues – UFRJ
- Carlos
Henrique Serra – UFF
- Carly
Barboza Machado – Observatório Fluminense/UFRRJ
- Carolina
Botelho – PUC-RIO/ENCE/IBGE
- Carolina
Grillo – UFF
- Cecilia
Minayo – Fiocruz
- Cezar
Honorato – UFF
- Clara
Polycarpo – IESP/UERJ
- Clarice
Peixoto- UERJ
- Claudia
Barcellos Rezende – UERJ
- Cristiane
Andrade – Fiocruz
- Daniel
Cerqueira – IPEA
- Daniel Hirata
– UFF
- Daniel
Misse – UFF
- David
Anthony Alves – UFF
- David
Maciel de Mello Neto – PPGSA/UFRJ
- Doriam
Borges – LAV/UERJ
- Edinilsa
Ramos de Souza – ENSP/FIOCRUZ
- Edson
Miagusko – Observatório Fluminense/UFRRJ
- Fatima
Cecchetto – FIOCRUZ
- Fernando Rabossi
– UFRJ
- Flavia
Braga Vieira – Observatório Fluminense/UFRRJ
- Francisco
Carlos Teixeira – CPDA/UFRRJ
- Frederico
Policarpo – PPGJS/UFF
- Hebe
Signorini Gonçalves – UFRJ
- Helena
Bomeny – UERJ
- Ignacio
Cano – LAV/UERJ
- Jacqueline
Muniz – UFF
- Joana
Domingues Vargas – UFRJ
- João
Trajano Sento-Sé – UERJ
- José
Cláudio Souza Alves – UFRRJ
- Juliana
Martins – FBSP
- Julita
Lemgruber – CESEC
- Kathie
Njaine – ENSP/FIOCRUZ
- Katia
Sento Sé Mello – UFRJ
- Klarissa
Almeida Silva Platero – UFF
- Lana Lage
da Gama Lima – UFF
- Leilah
Landim – UFRJ
- Lena
Lavinas – Instituto de Economia da UFRJ
- Lenin
Pires – UFF
- Leonarda
Musumeci – CESeC
- Lia Rocha
– UERJ
- Luciane
Patricio – UFF
- Luís
Roberto Cardoso de Oliveira – UNB
- Luiz
Antônio Machado da Silva – IESP/UERJ
- Luiz
Eduardo Bento de Mello Soares – UERJ
- Manuela L.
Picq – Amherst College
- Marcelo
Burgos – PUC/RJ
- Marcia
Leitão – UENF
- Márcia
Leite – UERJ, CEVIS, CIDADES
- Marcia
Maria Menendes Motta – UFF
- Marco
Antonio Perruso – Observatório Fluminense/UFRRJ
- Marco
Aurélio Goncalves Ferreira – Ineac/UFF
- Marcus
Cardoso – UNIFAP
- Maria das
Graças de Oliveira Nascimento – MIR
- Mayalu
Mattos – Fiocruz
- Michel
Misse – UFRJ
- Miriam
Abramovay – FLACSO
- Miriam
Krenzinger – ESS/UFRJ
- Miriam
Schenker – Claves/Fiocruz
- Nalayne
Pinto – Observatório Fluminense/UFRRJ
- Orlando
Alves dos Santos Junior – Ippur/UFRJ
- Pablo
Nunes – CESEC/UCAM
- Palloma
Menezes – UFF
- Patrícia
Constantino -Claves/ENSP/Fiocruz
- Paul Amar
– UCSB
- Paula
Poncioni – UFRJ
- Paulo Baía
– UFRJ
- Paulo
D’Avila Filho – UERJ
- Pedro
Cláudio Cunca Bocayuva Cunha – UFRJ
- Pedro
Heitor Barros Geraldo – UFF
- Pedro
Paulo Bicalho – UFRJ
- Raquel
Willadino – Observatório de Favelas
- Renata
Neder – CESEC
- Renato
Sérgio Lima – FBSP
- Ricardo
Gaspar Müller – UFSC
- Ricardo
Resende Figueira – UFRJ
- Roberto
Kant de Lima – UFF
- Rodrigo
Andrade – UFF
- Rogerio
Dultra dos Santos – UFF
- San
Romanelli Assumpção – IESP/UERJ
- Silvia
Ramos – CESEC/UCAM
- Simone G.
Assis – Fiocruz
- Sonia
Fleury – Fiocruz
- Thais
Lemos Duarte – PPGS/UFMG
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